Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

FEITICEIROS


                                         
Os bantos não admitem a morte por causas naturais. Se alguém morreu, foi porque alguém o matou. Ouwanga é um poder secreto de que alguns alegadamente se servem para provocar doença e morte a pessoas ou animais. O possuidor de ouwanga é o onganga. A sua motivação é, habitualmente, a inveja o o ciúme. 
Não se julgue que se trata de crenças extintas. Mantêm-se actuais em diversas regiões de Angola. Dois meses atrás li, num jornal de Luanda, a notícia de um homem assassinado pelos sobrinhos. A sociedade tradicional angolana é matriarcal e o tio é mais importante do que o pai. É dele que se herda. Um crime assim equivaleria ao parricídio. Este tipo de assassinatos tem suporte moral na tradição. O homem era considerado feiticeiro e devia ser neutralizado. Disseram-me que estes incidentes continuavam a ocorrer com alguma frequência. 
O universo banto é organizado. Para caçar os ongangas e defender a comunidade criaram-se os omutakeli. Trata-se de kimbandas altamente diferenciados. Beberam sangue de boi, na cerimónia de iniciação, e detêm um poder espiritual muito forte. As suas funções consistem em neutralizar feitiços e em liquidar, à distância, os lançadores de sortilégios. Consta que existem muito poucos. 
Há diversos métodos de adivinhação e de castigo.
Em alguns locais, a imagem do acusado é feita aparecer na superfície da água e depois apunhalada. 
Noutras regiões, o presumível criminoso, depois de identificado pelo adivinho, é entregue aos familiares do falecido que o torturam antes de o deitar a afogar. Passo a citar o padre Carlos Estermann:
Existem numerosos lugares cujo nome testemunha locais de execução. O rio Caculovar, afluente do Cunene, atravessa o país nyaneca-humbe. Conta bastantes charcos chamados eyumba-nganga (onde se lançam os onganga). 
Entre os cuanhamas, quem pretendia aniquilar um lançador de sortilégios, dirigia-se ao kimbanda levando uma espingarda e uma galinha. O omutakeli preparava a espingarda, untando-a com "remédios" a que adicionava pólvora. De madrugada, o consultor e o cliente dirigiam-se para a mata. Quando o sol nascia, o acusador apontava-lhe a espingarda e disparava. Nesse momento, o kimbanda cortava o pescoço à galinha e deixava escorrer o sangue para o chão.
Existem variantes deste processo. Os nyanecas dirigem-se ao kimbanda que bebeu sangue de boi levando terra que o criminoso pisou, ou mesmo um pedaço dos seus excrementos. O omutakeli procura raízes duma planta chamada onthumbo e tritura-as. Depois, faz um buraco no solo e mete lá as substâncias que lhe trouxeram, as raízes esmagadas e um pedaço de carvão. Feito isto, perfura tudo com uma flecha e acende fogo em cima. Depois de receber os presentes que representam os honorários, deita cerveja no buraco quente e remexe a terra com uma enxada. Com a lama assim formada, esfrega as testas dos clientes e diz-lhes: não vos zangueis com ele, não o insulteis, que as minhas drogas já o comeram.
Se o presumível culpado não morre, é porque o adivinho se enganou e o homem está inocente.




Referências: Carlos Estermann, Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro). Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.
Fotografia: colecção pessoal.

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