Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019



RELACÃO MÉDICO DOENTE


  NA LITERATURA PORTUGUESA


  MIGUEL TORGA




Adolfo Coelho da Rocha, que adotou o pseudónimo literário de Miguel Torga, nasceu em S. Martinho de Anta, em 1907, e morreu em Coimbra, em 1995. Filho de um agricultor modesto, trabalhou durante a adolescência na fazenda do seu tio José, no Brasil. Foi o tio quem lhe pagou os estudos de Medicina, em Coimbra.
Ainda me lembro da placa do seu consultório, no Largo da Portagem, na mesma cidade.
Não são frequentes as referências a médicos nem a doentes nos textos de Miguel Torga. Depois de muito procurar, encontrei no IX Diário a nota que transcrevo. Foi escrita em S. Martinho de Anta, a 26 de dezembro de 1960. Por essa altura eu, caloiro de Medicina, comemorara em Coimbra um Natal triste, frio e chuvoso.
Consultas e mais consultas a esta pobre gente, que parece guardar as mazelas durante o ano para quando eu venho. Ausculto, apalpo, dou os remédios e prometo a cura. Mas acabo por me sentir o verdadeiro beneficiário do bodo clínico. Reencontro nele o gosto do ofício, que a cidade tem progressivamente amortecido. Há um lance no exercício da profissão que sempre me apaixonou: a anamnese. O relato dos padecimentos, feito pelo doente à cordialidade inquisidora do médico. É ele o grande momento humano do ato clínico. O instante em que o abismo se abre ou não abre, a verdade que vem à tona ou não vem, se realiza ou não o encontro da aflição com a piedade. A civilização tornou quase impossível esse rasgar de trevas, essa entrega total e confiada da alma dorida ao desvelo hipocrático. A conjugada ação de mil forças inibidoras invalida a instintiva ânsia reveladora do sofrimento. Cada palavra diz outra coisa, cada queixume vem mascarado. As conveniências sociais, a covardia, a suspicácia e o hábito arreigado de hipocrisia impedem qualquer sinceridade. E o infeliz facultativo cansa-se e degrada-se no consultório a interrogar clientes de má-fé. Nenhum talento, nenhuma cultura, nenhuma autoridade, nenhum ardil conseguem desfazer a ambiguidade da confissão, que acaba sempre por ser uma longa mentira premeditada. Ora, no camponês, tudo se passa doutra maneira. Dono dum campo de consciência restrito, virgem ainda nas reações, quando adoece todo ele se concentra na observação dos sintomas do mal que o rói, e descreve-os depois objetivamente, com a candura dum primário e a precisão dum cientista. Sem falsos pudores, sem perturbadoras interferências, faz um relato leal e vigoroso da enfermidade. E é uma aventura emocionante e dignificadora acompanhá-lo pelas veredas da angústia, o apelo e a solicitude de mãos dadas, fraternos, a caminho da desilusão ou da esperança.
Não deixa de ser curioso anotar a preocupação de Miguel Torga com o abandono das máscaras sociais, tão cara a Fernando Namora, como veremos adiante.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.

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