Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 3 de fevereiro de 2019



RELACÃO MÉDICO-DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


 FERNANDO NAMORA




Fernando Gonçalves Namora nasceu em Condeixa-a-Nova, em abril de 1919 e faleceu em Lisboa, em janeiro de 1989. Licenciou-se em Medicina, em Coimbra. Como escritor, fez parte da geração de 1940, juntamente com Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Joaquim Namorado e João José Cochofel. Exerceu Medicina em regiões rurais da Beira Baixa e Alentejo. Fixou-se mais tarde em Lisboa, como médico do Instituto Português de Oncologia. 
Foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos.
É autor de uma extensa obra que se repartiu pela poesia, pelo conto, pelo romance e pelas crónicas de viagem. Aventurou-se também pela pintura, chegando a ser premiado nessa forma de arte.
Neste trabalho despretensioso sobre o modo como é tratada a relação entre médicos e doentes na literatura portuguesa, cito quatro prosadores médicos. Deixo, agora, Amato Lusitano de parte, por não ser ficcionista. Entre todos, foi claramente Fernando Namora quem mais se preocupou em aprofundar a questão. Três dos seus romances (Retalhos da vida de um médico (1949), O Homem disfarçado (1957) e Domingo à tarde (1961) têm médicos como protagonistas. No entanto, o relacionamento do clínico com os seus pacientes é bem aparente ao longo de boa parte do resto da sua obra.
Nela, o médico procura olhar-se a si próprio e olhar os doentes e, ainda, ver-se a si mesmo pelos olhos deles. É que somos todos animais de grupo e dependemos da impressão que os outros formam de nós.  Será isso que nos leva a fingir e pretender ser outra coisa, para abrigar a alma de olhares alheios. É a esse tipo de atitude que Fernando Namora designa como o uso da máscara social.
A doença coloca os humanos em situações de fragilidade e leva muitos doentes a pôr de lado as máscaras e a olhar o clínico nos olhos. O abandono do fingimento permite uma aproximação especial entre médicos e doentes.
 … esta relação íntima e o contexto dramático da doença (com a iminência da morte) potenciam a autenticidade, a queda das máscaras sociais e a revelação do verdadeiro “eu”.
O tema é recorrente na sua escrita. Em “Retalhos da vida de um médico”, Fernando Namora relata a sua experiência clínica em pequenas povoações do interior do país. As narrativas correspondem ao início da sua vida profissional.
Eu queria lutar com desespero contra a doença, chamá-la a mim, vigiá-la infatigavelmente; reanimar de vida esse corpo vencido. Mais soro, mais tónicos, tudo o que havia à mão. Foram horas de febre, às vezes de desalento, outras de esperança, ao lado do inimigo que se apoderava irresistivelmente duma vida.
Escreve, mais adiante:
Precisava de persistir. E entreguei-me a cada doente que me procurava com um ardor desesperado. Dias e noites, a horas escusas, faminto de êxito e simpatia, ia rondar o sofrimento, animar os impacientes, oferecer-me inteiro à vida alheia”.
O médico parece sentir a dor dos que lhes pedem ajuda.
Contudo, também ele usa a máscara social. O protagonista de “O homem disfarçado” tem “como principal objetivo ver-se a si próprio com clareza, livrar-se de uma carga de simulações.
Namora escreveu, em “A vacina”:
Tem sido de há muito minha convicção de que ao médico não bastam a sabedoria universitária, as patologias dos livros, a argúcia clínica que as desvenda e subjuga; o humanismo perspicaz, comovido, diligente, do velho médico de família, legenda romântica da nossa infância, continua válido se o pudermos ajustar às coordenadas atuais – e, em muitas circunstâncias, é ele que substitui a droga no seu objetivo de dar esperança e alívio a quem o sofrimento desesperou. Deseja-se ao médico uma sólida consciência profissional, pois não há missão tão eriçada de responsabilidade – mas que não falte, nesse complexo de virtudes, a que advém de um homem lúcido e sensível que se disporá oferecer a outro a simpatia humana que pode traduzir-se sob várias e sempre fecundas expressões. A atmosfera do ato médico é, antes do mais, um diálogo entre dois homens – o que ouve, decifra, decide, em quem se confia, e o que não pode ser repelido ou defraudado na sua necessidade de proteção. O êxito da terapêutica muito depende, pois, da maneira como o médico, mestre desse diálogo, o faz desenrolar.
Em “Domingo à Tarde”, Fernando Namora disserta sobre a incapacidade de comunicação com os doentes. Nesse romance, o seu personagem principal é um médico de um hospital de Lisboa que se refugia na distância e no isolamento. Pouco fala com os enfermos – limita-se a resmungos e a acenos de cabeça.
Trata-se de um oncologista desanimado com a eficácia limitada do seu arsenal terapêutico. Fernando Namora retrata um personagem ao contrário do que ele acredita deverem ser os médicos: um clínico azedo, solitário, cético e pouco esperançoso, mostrando dificuldade em distinguir pieguice de ternura
A redenção do oncologista dá-se pela influência de Clarisse, doente incurável, uma espécie de santa padroeira que o convence da importância da solidariedade e da compreensão da parte de quem socorre os humanos em sofrimento.
Clarisse ajuda o médico a pôr a máscara de lado e a voltar ser ele mesmo. Ela afasta também os seus disfarces. Modifica-se, ao saber que sofre de leucemia. Escreve Namora:
horas depois, quando entrei no laboratório, fui encontrá-la num banquinho baixo, quase aninhada, a fazer perguntas assustadoramente ingénuas à minha assistente.
Ela própria confessa, no seguimento do livro:
Nada tenho dentro de mim a não ser o medo.
O comportamento da doente acaba por alterar a atitude do clínico, que entende que ele e os pacientes navegam na mesma embarcação, enfrentam o mesmo inimigo e têm os destinos chegados. O doente depende do seu doutor, mas o médico compreende que a sua vida só faz sentido enquanto for capaz de transmitir a quem sofre carinho e compaixão. Não se trata apenas de sentir, mas também de mostrar que se sente. O médico deve pôr a máscara de lado.
Em “Estamos no Vento”, Namora retoma um dos seus temas favoritos: a doença põe à mostra a autenticidade humana enquanto a proximidade da morte torna o fingimento quase impossível.
A medicina continua a não se bastar com os manuais, indo sempre mais dentro do homem para o entender na saúde e na doença, sabendo que esta, por lhe afrouxar as resistências, não raro desvenda o que até aí se dissimulara em disfarces.
A prática médica é, fundamentalmente, uma relação entre pessoas.
Em algumas aldeias portuguesas, pouco terá mudado nos três quartos de século que separam os textos de Júlio Dinis e Fernando Namora. O consultório permanece arredado do quotidiano. O internamento hospitalar é uma possibilidade distante. As pessoas adoecem, são tratadas, melhoram ou pioram, e, quando lhes calha a vez, agonizam, nas próprias casas. As consultas médicas são predominantemente domiciliárias. Os meios auxiliares de diagnóstico constituem uma referência afastada. Para o diagnóstico, o médico apoia-se no próprio saber e na observação meticulosa dos doentes.
O contacto com o sofrimento, o desalento e até o desespero, terá tornado confessional a escrita de Fernando Namora.
Segundo Eduardo Lourenço, irmão de um médico que me calhou operar e de quem fui amigo, Namora foi um dos que esteve sempre «em uníssono com as dores do mundo”.
A minha experiência profissional teve início decorridos vinte anos sobre a publicação da primeira edição de “Retalhos da vida de um médico” e desenrolou-se durante quatro décadas. Aconteceu em meio urbano, em ambiente hospitalar, com possibilidades de recurso a meios complementares de diagnóstico cada vez mais sofisticados. Reler Fernando Namora, o escritor português que mais páginas dedicou ao relacionamento entre médicos e doentes, transportou-me a um tempo que me parece pertencer a um mundo mais antigo.
Julgo ter entendido, ao longo da vida, a necessidade de estar perto dos doentes e de lhes fazer sentir a minha solidariedade com palavras, gestos e atitudes. Raramente me terei deparado, contudo, com a tal “máscara social” com que Fernando Namora tanto se preocupou. Poderá faltar-me sensibilidade para esse tipo de visão das relações humanas. Sinto-me, porém, tentado a considerar que ela constitui essencialmente uma realidade literária. Quanto muito, Namora terá feito generalizações a partir de uma ou outra experiência mais marcante da sua vida clínica


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar o Processo de candidatura da Relação Médico Doente a Património Imaterial da Humanidade.


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