Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Aconteceu no meu consultório de Setúbal.
O homem, determinado, entrou à frente.
Parecia trazer demasiada pressa.
A mulher, claramente dominada,
seguia-o três passos atrás.
Não vinha pela arreata, mas parecia.
Ele sentou-se primeiro.
Andaria chegado
aos setenta anos, mas esforçava-se por manter o corpo bem direito.
A expressão do rosto era de desalento.
Ela seria quinze anos mais nova.
Tinha um ar fresco
apesar do cabelo branco, farto e bonito.
Devia ser pessoa de bom feitio, pois libertou facilmente
um sorriso cândido quando a cumprimentei.
Foi o homem quem falou.
Era um comerciante relativamente abastado e enviuvara meia dúzia de anos antes, numa altura em que as duas filhas, já casadas, se gastavam com os empregos e com as crianças. Não se davam mal, mas restava-lhes pouco tempo para darem atenção ao pai.
Nunca fora homem de aventuras. Antes de dar um passo, olhava bem o sítio onde assentar o pé.
Deitara os olhos pela terra e escolhera uma senhora modesta, viúva também mas sem filhos, tida como séria e asseada. Era bastante mais nova e toda a gente sabe que as mulheres duram mais do que os homens. Propôs-lhe casamento. Em troca do bem-estar e da segurança económica, pretendia companhia e protecção na velhice.
As coisas correram mal. Dois anos depois de casada, a mulher começou a ficar esquecida. Trocava os nomes às pessoas e abandonava facilmente a carteira na mercearia ou no talho.
Foi piorando. Passou a esquecer as panelas ao lume e a deixar esturrar a comida. Algum tempo depois, perdeu o sentido de orientação. Saía de casa e já não era capaz de regressar sem auxílio. Foi apagando da memória, do novo para o velho, tudo o que lá tinha estado registado. Acabou por esquecer que tinha casado outra vez e recusava ao marido a entrada no leito.
Ainda por cima, desleixara o vestir e, de vez em quando, urinava na cama.
O homem põe e os deuses dispõem. O senhor tinha programado o melhor possível os últimos anos de vida.
Via-se obrigado a tomar cada vez mais conta da mulher que recrutara para lhe suavizar a velhice.
O médico de família tinha-lhe falado na doença de Alzheimer.

1 comentário:

  1. Gosto do seu blog. Tenho um filho médico, jovem ainda, a quem gostaria de sugerir a criação de um blog com as suas experiências. Infelizmente, vejo-o pouco inclinado a enveredar por esse caminho, já que nem pelos meus blogs se interessa. Quanto ao Dr António Trabulo, talvez me queira ler em bernardadesouza.blogspot.pt e outros. Também ando por lá um pouco sozinha. Blogs só para gente famosa.

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